sábado, 6 de dezembro de 2008

14ª Crônica de Lya Luft para "Revista Veja"em 06/10/2004

Ponto de vista: Lya Luft Você tem fome de quê? "A fome, as fomes: de casa, saúde e educação, as essenciais. Mas – não menos importante – a fome de conhecimento, de esperança, de possibilidades, de liderança. Fome de confiança: ah, essa não dá para esquecer" Concordo com quem anseia pela erradicação da fome no mundo, mas se isso ocorresse no Brasil já estaria bom, para começar. Do meu cômodo posto de observadora, e do duro posto de cidadã com uma vida cotidiana onerada por altíssimos impostos, contas a pagar e coerências a preservar, quero expandir esse conceito de fome. A fome, as fomes: de casa, saúde e educação, as essenciais. Mas – não menos importante – a fome de conhecimento, de esperança, de possibilidades, de liderança coerente. Fome de confiança: ah, essa não dá para esquecer. Poder confiar no guarda, nas autoridades, até nos pais e nos filhos. Confiar na minha cidade, no meu país, nas pessoas em quem votei, e também nas que não receberam meu voto: ser digno não é vantagem, é obrigação básica. Andamos tão desencantados que ser decente já nos parece virtude, ser honesto é digno de medalha, e ser mais ou menos coerente vale Prêmio Nobel. Ilustração Ale Setti Fome de conhecimento: a primeira condição para melhorar de vida é conhecer mais sobre a própria situação e verificar quais os caminhos possíveis. Não tomando, tirando, invadindo, assaltando, mas crescendo enquanto ser humano. Ler faz parte disso, de ser integrado, de integrar-se. Ler como se come o pão cotidiano: ainda que seja o jornal esquecido no banco da praça. Não creio que a violência na cidade, no campo, no mundo seja fruto da fome de comida, e sim da fome de sentido, esperança e dignidade. A violência internacional, de momento emblematizada no terrorismo (a mais suja das guerras), nasce dessa fome e da perversa combinação de ideologia torta e fanatismo. A ideologia nem sempre comanda a morte, nem sempre desconcerta o intelecto: sendo positiva, conduz, ilumina e estimula, assim como a outra degola homens e mulheres inocentes, explode crianças ou as fuzila pelas costas, e faz disso um vídeo para espalhar pelo mundo. Somos uma humanidade acuada pela brutalidade das carnificinas movidas internacionalmente e pela violência que, em tantas formas, assalta e mata na nossa casa, nos bancos, nos bares, nas esquinas. Transcendendo os limites urbanos, ela se estende para lugares bucólicos que antes pareciam paraísos intocáveis: você pensa em comprar um sítio? Seja onde for, inclua nesse pacote o caseiro, os cães de guarda, alarmes e quem sabe cerca eletrificada. Teremos paz? Neste momento estou descrente, embora batalhe por isso do jeito que posso. Não por virtude, mas porque esse é um dos deveres básicos de qualquer pessoa. Devemos começar por instaurar a paz em nós mesmos e ao nosso redor, sem necessariamente desfraldar bandeiras ou ser missionários. Basta existir e agir como um ser pacífico (não confundam com pusilanimidade). Basta (pouco original, eu sei) reformar a si próprio: se posso ser agregadora, não disperso; se posso ser conciliadora, não devo espalhar ressentimento; se quero a paz, preciso não ser mensageira de rancores. Tudo começa, como dizem, em casa: e é assim desde que ela era um caverna primitiva e nós, uns trogloditas um pouco menos disfarçados do que hoje... Com fomes bem mais simples de satisfazer. Lya Luft é escritora

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